quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Reviravolta - Parte 4

Bálsamo

- Quer ir à Liberdade comigo?
Beatriz, ou simplesmente Bia, é a minha sobrinha mais nova. Alta, magra e cabelos cortados  no mesmo estilo dos personagens de um mangá. Para quem não a conhece, parece tímida, mas é uma garota curiosa, divertida e sempre em busca de novidades.
- Vai!! Vai ficar triste aí?
- O que você vai fazer lá?
- Ah, vou percorrer as lojas para comprar uns detalhes para o meu cosplay, depois vou escolher alguns mangás e no fim vou almoçar... Poxa, faz tempo que não saímos juntas.
Isso era verdade, depois da avalanche, fiquei quieta demais, calada demais.
- Tá bom, vai! Passo aí às 10 horas e vamos.
- Não, deixa que vou até na sua casa.
O domingo estava claro, com temperatura agradável e as lojas começavam a abrir. Já tinha ido ao bairro da Liberdade outras vezes, mas desta vez iria conhecê-lo sob os olhos de uma otome. Otaku/ otome (para as meninas) é uma expressão usada no Japão para definir pessoas viciadas em alguma coisa. No caso da Bia remetia aos mangás e animes, além de ser uma cosplayer. O termo para quem não conhece é a forma que chamam para quem vestem-se como seus personagens preferidos de animes ou mangás.
Entramos em um pequeno shopping, que mais parecia uma galeria com vários andares. A primeira parada foi em uma loja de mangás. Ela percorria o estabelecimento com uma familiaridade que me deixou surpresa. Não sei se foi pela sua empolgação ou pela paixão que ela manipulava aqueles pequenos livros-revistas que comecei a mexer nas coleções das outras prateleiras.
- Quer que te ensine? É assim, você lê de trás para frente. E da direita para esquerda e vai indo.
Diverti-me com o fato de uma ocidental, descendente de portugueses e italianos, sentia-se tão à vontade com aquele jeito que só os japoneses conseguem ler.
Enquanto ela me explicava histórias dos vários mangás, uma publicação me chamou a atenção: “A Princesa e o Cavaleiro”, de Osamu Tezuka.
- Olha !! Assistia a esse desenho quando pequena.
- Sério? Está vendo? Você assistia anime e nem sabia. É que nem o meu pai. Ele falou que adorava ver Speedy Racer. Ué, era outro anime. disse divertindo-se.
E não é que ela estava falando a verdade? Fui tão empolgada que depois acabei me pegando comprando alguns exemplares de “A Princesa e o Cavaleiro”. Foi a partir daí que comecei a me apaixonar por mangás, animes e outras formas da cultura japonesa.
Muitas vezes ia semanalmente ao bairro em busca de novos volumes das mais variadas histórias. Confesso que a princípio atrapalhei-me na leitura que não se podia se chamar de livros...ou tão poucos revistas, mas como a própria senhora que me atendia na busca dessas publicações disse: “esse é o perfil da literatura pop japonesa”. E aí aos pouquinhos um desafio que me despertou um interesse: aprender japonês.
- Japonês?, perguntavam.
- Sim, afinal quem sabe realmente falar por aqui? Aliás, só os descendentes ou as pessoas nativas do país que aqui vivem e olha lá.
Pedi conselhos para os amigos descendentes, procurei anúncios e pesquisei escolas que podiam ser idôneas. E então a achei, no centro do bairro que até então virou a minha segunda casa: a Liberdade.
Realizei a minha matrícula meio apreensiva, empolgada e, confesso, um pouquinho com medo.
E assim foi , em uma quarta-feira à noite comecei o curso. Os horários que escolhi foram às quartas-feiras e aos sábados. Às quartas começava por volta das 19:30 e aos sábados às 10:30 horas.
A primeira aula foi bem diferente e divertida, se dizermos assim... Cheguei à escola por volta das 19 horas. Procurei uma cadeira que ficasse no meio da sala, e não muito perto da janela porque a noite estava fria. Enquanto esperava pelo início das aulas, duas senhoras próximas a mim conversavam animadamente.
Pensava comigo mesma que é sempre estranho iniciar algum projeto que envolve outras pessoas que ainda você não tem intimidade. Não que tivesse dificuldade para fazer amizades, mas o começo é sempre difícil.
Às 19:30 em ponto, o professor, um senhor de 70 anos, adentrou à sala e nos cumprimentou com bastante reverência. Aos poucos percebi que foi uma das melhores decisões que já tomei na minha vida.
Passado 15 minutos, um rapaz chega esbaforido à sala.
- Oyasuminasai !
A cena era engraçada, o rapaz parecia um gigante desajeitado perto do pequeno professor. Com a cara surpresa, sua primeira reação foi sorrir, mas de modo envergonhado.  Afinal, ele tinha consciência do seu atraso (hábito que os orientais não gostam muito). A classe divertiu-se, e o senhorzinho disse:
- Você sabe o que falei?
- Hum..não!
- Boa-noite ! – respondeu sorrindo – Sente-se meu rapaz e seja bem-vindo à aula.
Ele dirigiu-se à mesa vaga ao meu lado e acomodou-se de forma vagarosa como um gato e tentou fazer o mínimo de barulho com as suas coisas.
Não sei explicar, mas de alguma forma ele me encantou. Era alto, magro, os olhos azuis e cabelos bem pretos e ondulados. Era estiloso, não só na maneira de trajar, mas o jeito que se comportava.
Pensei: "Catharina, por favor, foque na aula. Você não quer encrencas, né?"
Mas parecia que elas me perseguiam...
Quando o curso terminou, dirigi-me ao estacionamento. O manobrista entregou-me o carro e quando ia saindo, quase atropelo, por sinal, o mesmo rapaz.
- Desculpas! Tudo bem com você?
- Nossa! Eu que peço desculpas, estou tão distraído hoje, mil perdões.
Deu um sorriso e seguiu até o carro dele.
Aos poucos, percebi que ele era bem participativo e falante durante as aulas . Eduardo era o típico cara desembaraçado que aos poucos conquistou toda a classe, inclusive a mim. Curioso, inteligente, sem dúvida, ele não passava despercebido .
Aos sábados, a turma reunia-se para almoçar em um restaurante japonês em uma galeria e para tomar café o local escolhido era uma padaria na Rua dos Estudantes. Lá, para mim, era o paraíso. Uma variedade de pães e doces que você escolhia, usava o pegador para colocá-los na bandeja, passava no caixa e depois podia deliciar-se.
Em muitas dessas reuniões, ele sempre sentava ao meu lado. No começo pensei que não fosse de propósito. Distraída, mais tarde percebi que era ao contrário. Tentei procurar todos os defeitos que me incomodavam nele, mas quando sorria, toda a minha censura desvanecia.
- Quer provar um pedaço de pão chinês ? Está uma delícia!
- Não, muito obrigada, disse.
- Ah, é que de carne de porco, né? Você não comeria o bichinho que é símbolo do seu time.
Dei uma risada e disse:
- Você é sempre assim? Perde o amigo, mas não perde a piada?
- É... digamos que sim. Mas depende da amiga, eu fico sem graça.
"É isso mesmo que pensei?", perguntei para mim mesma. Mas como ele tem o dom de disfarçar muito bem, desconversou quando tentei entender o “sem graça”. E não é que o maledeto entrou com outra pergunta:
- E aí o que você vai fazer hoje à noite ?, perguntou enquanto tentava cortar o pãozinho com hashi.
- Ah, sabe que não tenho nenhum compromisso para hoje?
Não, não foi eu que respondi isso, mas Matilde, uma moça que era uma gracinha, mas completamente complexada.
Ele olhou para mim e sorriu.
- Depois a gente conversa, falou sussurrando e com esboço de sorriso do lado.
Sim – pensava – ele é muito charmoso, apesar de atrapalhado.
Continuamos a paquera por algum tempo. Trocamos telefone, messenger , adicionamos um ao outro nas redes sociais. Conversávamos bastante, e aos poucos trocamos confidências, mas nem e nem outro teve coragem de confessar os sentimentos.
Era evidente o quanto ele gostava de mim e eu, dele. Talvez por orgulho ou medo da rejeição que nos atrapalhou para formamos um casal em tempo mais curto.
Mas naquele sábado chuvoso tudo aconteceu...

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